quinta-feira, 15 de março de 2012

O Velho e o Pombo + Último Sol

A banda Sonora: Último Sol




O velho sentou-se mais uma vez no banco de jardim. Fê-lo vagarosamente, controlando assim o macerar doloroso de seus ossos. Abriu um saco de plástico, o mesmo de sempre, retirou um pão do dia anterior religiosamente guardado para os seus amigos pombos e ficou à espera. Suas mãos enrugadas contraiam-se em tremores involuntários e suas veias salientes latejavam marcando os segundos que compunham o martelar efémero do tempo. Eram quase nove horas da manhã.
O velho sabia que por volta desta hora as columbinas criaturas surgiriam dos céus vindas de parte incerta. Era essa também a hora em que ele se sentia feliz, enchendo o seu coração com o vinho do santo graal e esvaziando o odre de suas lágrimas. Durante os primeiros anos da reforma a sua vida havia sido prazenteira. Percorria as ruas da cidade, demorava-se nas esplanadas dos cafés, conversando com amigos, desconhecidos e até com a empregadas de mesa. Trajava sempre fatos negros ou cinza adereçados por um lenço no pescoço e por um inseparável chapéu preto de abas, cujo nome de baptismo era Stuart. À noite escrevia romances, contos e fábulas que lia para sua esposa, para seus amigos e para os seus netos. Cada vez que lhes recitava os pequenos manuscritos via; nas rugas da mulher, mapas cartográficos de ilhas serenas onde surgem histórias de amor; nos sorrisos dos amigos, sábias personagens de profundidade interior; na ternura de seus netos, duendes, fadas e diabretes saltitando e cantarolando nas florestas do sonho. Os netos partiram, os amigos desapareceram nos vãos da tristeza e sua parceira de jogos de cartas e de lutas atribuladas definhou até ao último suspiro. Passava então os dias a fumar lembranças nas esplanadas locais e a conversar com desconhecidos que já não o queriam ouvir. Certo dia resolveu dirigir-se a um banco de jardim com o fito de observar o mundo à sua volta. Puxava do seu último cigarro quando um curioso pombo se aproximou saltitando. O velho sorriu. A ave deu então mais uns saltinhos, delicadamente tirou-lhe o cigarro dos dedos e fugiu feliz da vida com mais um estranho objecto para a sua privada colecção de cacarecos humanos. Desde esse dia, o velho criou o columbófilo ritual de alimentar e observar tão curiosos seres, que eram agora os únicos a prestar-lhe alguma atenção. “Caro amigo” – dizia o homem – “o governo e eu alertamos-te que fumar prejudica gravemente a saúde, por isso agora trago-te pão. Espero que os teus requintes de gourmet não te impeçam de apreciar o alimento dos alimentos, o alimento da alma, O alimento!” O grupo de pombos apareceu finalmente e pousou mantendo uma certa distância. A ave, amiga fiel do homem, lá deixou os seus camaradas e aproximou-se um pouco como sempre fazia. Aproximava-se timidamente, porém cada vez mais. O velho regozijava silenciosamente quando o pombo parou mesmo à sua frente, fitando-o Preparava-se para lhe atirar o pedacinho de pão, que segurava na mão direita, quando notou que não o conseguia fazer. Surpreso tentou novamente. Em seu braço estático o metrónomo de suas veias estava estava parado e o velho sentia a angústia de não conseguir alimentar seu velho companheiro de lembranças. O animal trepou para o frágil joelho do homem e, como havia feito no dia do cigarro, retirou carinhosamente o pão que, com amizade o velho lhe havia reservado. E levantou voo levando consigo o laço sagrado da ternura. O velho sentiu-se levitar, viu o mundo tornar-se cada vez mais pequenino e serpenteante e sem qualquer réstia de solidão dirigiu-se com seu amigo até à margem secreta do rio da vida.

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