A outra face

Era uma vez mano...Ainda te lembras?


Hoje sorveram-me um bocado de espirito mano.
Arrancarram-me um naco farto e sofrimento.
Apanharam-me numa viela caiada de noite,
Toda ela só de escadas e martirios
E como mil cabras de corno cobarde,
Apedrejaram-me mano.Espancaram-me até ao escuro do esquecimento.
E celebraram o feito numa fogueira á pressa.
E dançaram lá mano. Mano! Festejaram!
E as chispas que da lenha ardida saíam
Iluminavam como qualquer poeta
A alcofa de um caminho para as estrelas
Que em redor cantavam em sua própria glória.
E eu já morto, já longe mano, respirava.
E eu mano, já morto, alevantei-me.
E com o meu olhar desfocado procurei-te,
E eras labareda, semente de fogo até ao céu.
E como uma velha de trapos
Encostado a muros enegrecidos e torpes
Eu segui o lúgubre caminho até á toca,
Subindo uns degraus ainda mais perecidos que a minha dor.
E cheguei á cama pequena de arame onde me atirei.
Ainda os ouvia lá por baixo a festejar
O pedaço de pele que me arrancaram, que como tabaco mascaram
E que cuspiram na fogueira do delirio.
Estou vivo mano, eles deixaram-me vivo!
Mas ao fundo da noite poeirenta das chispas,
Festejavam mano. A sua conquista. Qual?
Eu, antes de adormecer ainda pensei...
-Onde ao longe o mar dormia
caiu a noite para que nasça outro dia.-
Santa ingenuidade!...pensei,
Antes de adormecer no lençol húmido de sangue
E suor de uma noite que as galáxias jamais esquecerão!
Achas que eles terão saudades minhas?
Não mano,não terão. Julgam-me igual a ti.
E onde ao longe o mar dormia, qualquer dia,
virá a vaga adamastor, a honra e a seara cor de leão
E o sangue que correr será de choça,
De cabra de corno cobarde mano...Irmão!
E eu, numa noite trespassada de balidos em chamas
Levar-lhes-ei toda a saudade que eles não mataram!
Em tua memória mano, e em memória da fogueira onde és de cinza.

Óscar Dinis