segunda-feira, 19 de agosto de 2013

Noites de Quimera - I



                                                                                                                                                                    Capítulo I  / X


A noite era escura; mais escura do que o habitual; mais medonha do que o habitual; mais sombria do que o habitual. Seu hálito quente e húmido envolvia as pedras da calçada, os bancos de jardim, as árvores enrugadas e até os velhos olhares cansados dos bêbedos noctívagos, que cambaleavam pelas ruas e vomitavam nas valetas. Foi nessa noite exasperante que aquela voz inquieta, que se esconde nos subterrâneos encefálicos de todos os seres humanos chamou, pela primeira vez, António Seco; um escultor em início de carreira que, apesar do anonimato a nível nacional, gozava de alguma popularidade na sua terra-natal, a recém-denominada cidade de Quimera.
Estávamos em 1999 e esta pequena e asfixiante localidade não fugia àquela velha inquietude, que caracteriza qualquer momento de transição; tal como um novo regime,  uma nova moeda, um final de século, ou até um final de milénio.
Mais do que  qualquer outra coisa, António Seco era um observador. Talvez as suas esculturas fossem o reflexo de uma percepção exacerbada pela avidez de estímulos, talvez fossem apenas uma forma de fugir à rotina, ou talvez fossem apenas uma forma de rotina.
Ao procurar o cansaço através de uma clandestina caminhada nocturna, António Seco ouviu um silvo; um sussurro quente, doce e rouco que lhe era mais do que familiar; era já um frémito de sua voz, uma reminiscência de sua memória maltratada por lentas mussitações e melancólicas vozes sensuais, que o atraiam e o impeliam a beijar aquele som adocicado de carne, férrea de sangue e de promessas. Obsessões de seu instinto, murmúrios de seu peito, medo versus atracção. União com a noite e com a solidão do nada e do desconhecido.

Sem comentários:

Enviar um comentário

Direitos de Autor

Creative Commons License
Nas Garras de um Deus Maior by Oscar Dinis is licensed under a Creative Commons Attribution-NoDerivs 3.0 Unported License.

Blogues parceiros:

Últimas publicações:

Rossa máis náum èh matuh!

Alto da Trigueira - Agricultura Biológica

Humor a Sêco - Os cartunes do Trevim

CENTRO DAS MARRADAS