Capítulo I / X
A noite era escura; mais escura do que o habitual; mais
medonha do que o habitual; mais sombria do que o habitual. Seu hálito quente e
húmido envolvia as pedras da calçada, os bancos de jardim, as árvores enrugadas
e até os velhos olhares cansados dos bêbedos noctívagos, que cambaleavam pelas
ruas e vomitavam nas valetas. Foi nessa noite exasperante que aquela voz
inquieta, que se esconde nos subterrâneos encefálicos de todos os seres humanos
chamou, pela primeira vez, António Seco; um escultor em início de carreira que,
apesar do anonimato a nível nacional, gozava de alguma popularidade na sua
terra-natal, a recém-denominada cidade de Quimera.
Estávamos em 1999 e esta pequena e asfixiante localidade
não fugia àquela velha inquietude, que caracteriza qualquer momento de
transição; tal como um novo regime, uma
nova moeda, um final de século, ou até um final de milénio.
Mais do que
qualquer outra coisa, António Seco era um observador. Talvez as suas
esculturas fossem o reflexo de uma percepção exacerbada pela avidez de
estímulos, talvez fossem apenas uma forma de fugir à rotina, ou talvez fossem
apenas uma forma de rotina.
Ao procurar o cansaço através de uma clandestina caminhada
nocturna, António Seco ouviu um silvo; um sussurro quente, doce e rouco que lhe
era mais do que familiar; era já um frémito de sua voz, uma reminiscência de
sua memória maltratada por lentas mussitações e melancólicas vozes sensuais,
que o atraiam e o impeliam a beijar aquele som adocicado de carne, férrea de
sangue e de promessas. Obsessões de seu instinto, murmúrios de seu peito, medo versus
atracção. União com a noite e com a solidão do nada e do desconhecido.

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